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Reflexões em tempos de pandemia

A ambivalência de opostos em tempos da pandemia: os de fora e os de dentro em territórios de baixa densidade

Saudade Baltazar, investigadora integrada do CICS.NOVA.UÉvora, é a autora do texto de reflexão “A ambivalência de opostos em tempos da pandemia: os de fora e os de dentro em territórios de baixa densidade”.

Esta reflexão integra-se na iniciativa dinamizada pelo CICS.NOVA.UÉvora de resposta das ciências sociais à pandemia COVID-19 intitulada “Momentos-Covid19: Reflexões críticas em tempos de pandemia”. Este texto reflecte sobre as fronteiras erguidas pela pandemia COVID-19 em territórios de baixa densidade e as percepções entre os habitantes destes territórios e a restante população. No texto, a autora questiona "No interior do país, na sua maioria, estes territórios foram poupados à pandemia, mas poderão continuar a sê-lo? O que pode acontecer quando passarem a ser regularmente visitados?".

 

 

A ambivalência de opostos em tempos da pandemia: os de fora e os de dentro em territórios de baixa densidade

 

Maria da Saudade Baltazar; Dep. Sociologia; CICS.NOVA.UÉVORA

baltazar@uevora.pt

19 de junho de 2020

 

(tempo estimado de leitura: 4 minutos)

 

Os territórios do interior do país, predominantemente rurais, enfrentam desde as últimas décadas o problema de despovoamento, que progressivamente tem colocado muitas pequenas localidades sem outros horizontes de futuro.  

As promessas da globalização associadas ao elogio dos benefícios da abertura das fronteiras e ao reconhecimento da diversidade de modos de vida, parecem ter impulsionado os fluxos migratórios de saída das suas populações em busca de melhores condições de vida. São territórios marcadamente repulsivos, mas com forte capacidade de saber bem receber e acolher todos aqueles que passaram a residir noutros, e não raras vezes maiores, aglomerados populacionais dentro ou fora das fronteiras nacionais.

O calendário das grandes festividades sempre foi marcado pelo regresso temporário das suas gentes, que embora a residirem fora, durante alguns dias transformavam o monótono quotidiano dos que ficaram, especialmente os velhos “guardiões” do território e dos poucos mais jovens que ainda permanecem no local.

O estado de confinamento em época de pandemia COVID -19, foi vivido com grande apreensão de parte a parte, com redobradas preocupações e ansiedades sobre a incerteza do futuro, mas também do imediatismo por se terem alterado radicalmente as rotinas dos reencontros, que até então embora fugazes, enchiam o território e os corações, em especial daqueles que ocupam os seus dias a “aguardar que o tempo passe”.  Ergueram-se fronteiras territoriais, proibindo deslocações para fora do concelho de residência durante alguns períodos de tempo, e que intensificaram sentimentos de tristeza e de afastamento físico e social até aí nunca conhecidos. Relacionamento suportado exclusivamente pelos recursos tecnológicos, onde o telefone e as plataformas digitais tiveram níveis de utilização nunca alcançados.

 O desconfinamento, embora faseado, e que já se prolonga desde inicio do mês de maio, não reverteu a situação.  As fronteiras mantem-se, embora sejam agora de uma outra ordem, cujos impactos no futuro se afiguram de grande imprevisibilidade e a nova normalidade a ser alcançada será seguramente caraterizada por diferentes padrões de relacionamento entre os de fora e dos de dentro em territórios de baixa densidade.

No interior do país, na sua maioria, estes territórios foram poupados à pandemia, mas poderão continuar a sê-lo? O que pode acontecer quando passarem a ser regularmente visitados? O medo, a insegurança e particularmente a imprevisibilidade face ao futuro teimam em separar os que saíram e os que ficaram nestes territórios.

Constatação que se traduz num desafio a ser investigado no domínio da sociologia.

Quem são os de fora | aqueles que saírem dessas pequenas localidades? Quando e porque saíram? O que significa para eles o regresso, ainda que temporário, às suas origens? Como viveram a sua condição de “externo” nos locais onde residem?  E agora em fase de desconfinamento, tendem a continuar a sentirem-se outsiders, no território de onde são naturais? Representam perigo de contágio e logo de insegurança, na perceção dos de dentro?

A figuração sociológica  de algo em relação e de representação do outro tem sido traduzida no que Simmel (1983)[1] designou de «experiência do estrangeiro» que ultrapassa largamente a sua atuação no espaço físico, e é também no campo social e simbólico. Sujeito ambivalente que participa e determina um cenário de dimensões contraditórias: proximidade e distanciamento; pertença e rutura, afetividade e indiferença, suspeição e perigo. É aquele cidadão que não é daqui, mas está ali.

E agora o que passamos a ter? Cidadãos que são daqui, mas não estão ali, e que se sentem estrangeiros também no seu território de origem e no seio dos que lhe são mais próximos! Ambivalência dos novos tempos!

 


[1] Aceder em  https://www.academia.edu/9565522/Georg_Simmel_-_O_Estrangeiro

 

 

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico